lunedì 14 dicembre 2009

Stefano Valente: História. Estória. A lição da cultura de língua portuguesa.


Sem palavras introdutórias: STEFANO VALENTE.


A história. As estórias. History. Stories. Hoje em dia existem dois grandes idiomas mundiais em que se registra a presença duma cisão formal da gama de significados duma mesma palavra: a derivante pelo latim historia.

A um primeiro olhar a exigência seria, seja no inglês seja no português, a de distinguir entre o relato, a exposição de acontecimentos reais — e às vezes até certificados por testemunhos — (history, história), e a narração de factos imaginários, o conto, a ficção, a fábula etc. (story, estória).

Não é possível, porém, liquidar o assunto tão rapidamente. Antes de tudo é mesmo um dado histórico que no inglês as duas vozes convivem, dir-se-ia, desde sempre, enquanto que o termo estória parece representar uma introdução bastante recente em português.

Uma breve pesquisa sublinha como, com estória, ficamos diante dum neologismo, duma forma cuja origem é caracterizada no sentido geográfico. De facto, se o Dicionário da Língua Portuguesa por Almeida Costa e Sampaio e Melo não o refere (pelo menos na 7ª ed., de 1994), encontramo-lo, por exemplo, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras; mais, estória é definido mesmo um brasileirismo por outros dicionários, que também o designam como o aportuguesamento do inglês story.

Além de podermos estabelecer com precisão de qual lugar do Brasil e quando a forma estória se derrama no mundo lusófono — que é tarefa dos linguistas de profissão —, é evidente que a sua difusão está ligada ao contexto literário, pois que se começa sistematicamente a falar em estórias com a obra do brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967).

Guimarães Rosa — a quem certo crítico chamou de Homero, de Cervantes, de Joyce brasileiro — elevou na sua escritura o sentido da palavra estória à máxima potência: a partir da colectânea Sagarana (1946), prosseguindo pelas Primeiras Estórias (1962: faça-se atenção ao título), até o maior sucesso do romance Grande Sertão: Veredas (1963), Guimarães Rosa desenvolve a sua narração como um enorme conto feito por milhares de vozes, cada uma delas falando na sua própria verdade dos factos. Factos que nos poderiam parecer pequenos, localizados (também no sentido de regionais), de menor importância, ou até inventados, fictícios. Guimarães Rosa, porém, mostra-nos que é mesmo graças a todas aquelas histórias menores — com h minúscula — que é possível uma reconstrução da verdade dos acontecimentos. Acontecimentos que têm de ser considerados principalmente como vivências: porque é pelo viver dos protagonistas — e das almas deles — que o conto da realidade toma forma, encarna, sobe à universalidade da experiência humana.

Principiando pelos contos dos boieiros e das figuras marginais do planalto sertanejo Guimarães Rosa ensina que, ao lado da História dos ricos e dos poderosos — dos que, o mais das vezes, resolvem o que tem de ser escrito nos livros —, há sempre continuam a andar os rios das estórias dos que não possuem direitos — dos pobres, dos menos afortunados, dos subalternos. E são aqueles rios, ao fim, e não os biliões de páginas decididas pelos vencedores ou pelos donos, que irão a formar o oceano do tempo do homem.

Portanto, estórias não só como invenções literárias, mas sobretudo como relatos do viver de quem não tem palavra, de quem amiúde nem sequer consegue aparecer — dar um signo da sua presença na terra. De Guimarães Rosa estória, neste sentido mais completo, faz-se espaço na linguagem portuguesa moderna. Quem a adopta — ou chega naturalmente a ela — sabe não poder prescindir duma matriz bem determinada de narração, isto é, da característica que necessariamente têm mais vozes quando estão a falar. Eis a altura da oralidade, entendida como momento de descrição coral, a mais pontos de vistas e por mais que um idiolecto somente.

A transformação do estilo de José Saramago — que se realiza com Levantado do Chão (trad. it. Una terra chiamata Alentejo) de 1980 — representa um claro exemplo de tudo isto. O autor português passa a escriturário que dá voz aos lavradores alentejanos — que permite também a dezenas de personagens do mísero interior português, sempre longe do resto e do bom do país, dizerem as suas verdades. Trata-se mesmo dum coro de palavras de angústia, cansaço, desengano — e também de esperança, ingenuidade, doçura. Mas em Saramago esta coralidade enriquece-se também dum outro aspecto: o da simultaneidade — ou melhor, uma atemporalidade — dos factos e dos casos que são os contos e os vividos dos protagonistas, a tal ponto que, para o autor, o tempo não é mais uma pura sucessão de antes e depois, uma simples linha recta de ocorrências, mas é algo muito semelhante a um ecrã único em que assomam e se remexem rostos, vivências, vozes. Depois de Levantado do Chão, Saramago jamais abandonará esta oralidade simultânea — jamais abandonará a estória. Por meio dela nascerão obras-primas como Memorial do Convento (1982), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1992), Ensaio sobre a Cegueira (1995). Graças à estória em 1998 Saramago ganhará o Prémio Nobel da Literatura.

Em conclusão, a dupla história-estórias é coisa bem diferente de history-stories. O desenvolvimento destes dois termos assinala, no português, um nível de experiência línguistico-literária que não tem comparações com outros idiomas ou culturas. Talvez o percurso duma palavra esteja ligado a acontecimentos imprevistos — ou até ao azar dos seus falantes. Porém é um facto que uma literatura composta não só por histórias (e pelas suas “versões oficiais”), mas também por estórias, pode ensinar uma outra, preciosíssima acepção do que significa respeito pelo outro.


STEFANO VALENTE

Nessun commento: