lunedì 24 ottobre 2011

Stefano Valente: reflexão sobre o "Livro do Desassossego"


Exercício do nosso aluno Stefano Valente sobre a leitura de um excerto do "Livro do Desassossego":

O raio petrificado
A estética da guerra e o futurismo sensacionista de Pessoa



No extraordinário corpus textual de Fernando Pessoa (ou melhor: dele e dos seus heterónimos) e, sobretudo, no Livro do Desassossego, não faltam todas as marcas ressaltantes dos que foram os movimentos artístico-filosóficos da época e da formação do escritor. Os rastos do pensamento de Nietzsche, de Kierkegaard, de Bergson, de Whitman – só para citarmos alguns –, assinalam uma vereda não fácil. Uma vereda pisada pelos muitos eus de um universo/alma/mente sempre extraviado – e que sempre consegue reencontrar-se – pelas muitas encruzilhadas que o ar dos seus próprios tempos lhe oferece: aquele decadentismo todo europeu (e francês, maximamente) que nunca conseguirá libertar-se de um simbolismo à Pessanha, e a herança inesgotável do classicismo e do romantismo. E também a ruptura mecânico-sonora do futurismo. Tudo isso é – Pessoa é – de facto a complexidade do movimento que se afirmará com a muito vaga etiqueta do modernismo. Contudo, Pessoa habituar-nos-á a uma contínua revisão e reanálise do que o panorama da crítica literária tem por certo, bem nomeado e colocado.
O (apenas) ajudante de guarda-livros na Rua dos Douradores, Bernardo Soares, mostra bem o andar nunca previsível do pensamento e da estética de Pessoa.
Antes de mais, é preciso notarmos que Bernardo Soares – o “autor” do Livro do Desassossego – ganha imediatamente este bissílabo, semi-, diante do agá de heterónimo: face aos vários Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro etc., ele talvez (temos sempre que usar o talvez com respeito a Pessoa) se torne o Outro por excelência do escritor, o seu – digamos assim – “segundo eu”. Pois (será o próprio Pessoa a afirmá-lo) «não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade».
(Definir sempre por faltas, por ausências e negações. Porque, na constelação-fragmentação dos Pessoas debruçados sobre o imenso espelho da vida e do sonho, é mais simples determinar o que não é.)
Dividido entre a procura da indiferença, da estudada serenidade fidalga e elegante, e a inelutável, humana dependência do sentir (e sentir muito), não pode que ser o semi-heterónimo Bernardo Soares a consertar a colectânea de pensamentos, sonhos, teorizações, desalentos e euforias – de «impressões sem nexo, nem desejo de nexo» – que constitui o Livro do Desassossego.
Nesta obra-não obra (1) Soares/Pessoa, niilista além do niilismo, dá-nos uma estética da guerra que firma o momento terrível da luta, que fixa e bloqueia o momento em que a morte se faz soberana – o instante-triunfo dos futuristas puros, dos fieis sucessores de Marinetti. O raio da destruição, que tanto fascinará muitos povos e regimes desse ’900 mal começado, no periférico Portugal de Pessoa afrouxa-se, gela-se e petrifica-se, até regressa ao seu estádio embrionário: «O lado estético da guerra» – isto é, o que realmente interessa ao ajudante de guarda-livros lisboeta, sempre em busca da não-perturbação, sempre atraído pela miragem de uma lucidez apática – «não está nos combates nem nas campanhas. Está nos preparativos»(2).
Agora, a respeito dessa definição no Livro do Desassossego, surge um dilema. Trata-se, possivelmente, de um conceito que vai muito além da exaltação da violência e do tremendo que «essa Europa desmantelada» da I Guerra Mundial está a conhecer? Ou, pelo contrário é um limite do escritor, tão empenhado no seu espalhar-se, na sua proliferação de si mesmos, que não consegue canalizar a “electricidade” do moderno, desenvolvê-la até às últimas consequências?
Pois o pensamento do semi-heterónimo pára a um nível meramente estético, que cuida somente da estética, diríamos à Benedetto Croce. O fascínio das «sinistras coisas elementares dentro de nós», da mesma «matéria de que as tragédias são feitas» – continua Bernardo Soares – é, sim, «uma coisa grande». Mas, no fundo, o que conta é só o próprio «mistério da Natureza»: «o estético, o elegante das coisas é (…) sempre uma coisa que elas formam e não tem relação nenhuma com a natureza delas».
Talvez a resposta seja que, de qualquer maneira, tudo se renova, se reconstrói, através do eu multiplicado de Pessoa. O verdadeiro futurismo literário português conseguirá encontrar a sua primeira expressão (3) na Ode Marítima escrita mesmo pelo engenheiro naval Álvaro de Campos, o homem da cidade e da máquina, outro heterónimo pessoano. Mas será mesmo a partir dessa Ode, no segundo e último número da revista «Orpheu», que o futurismo lusitano (4) adquirirá a marca específica de sensacionista.
Di-lo-á Alberto Caeiro, o heterónimo-mestre segundo o próprio Pessoa, num texto presumivelmente de 1916:
«1. Todo o objecto é uma sensação nossa; 2. Todo o objecto é uma sensação em objecto; 3. Portanto, toda a arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação».

A Grande Guerra e a problemática situação política interior de Portugal marcarão a breve estação do futurismo no extremo Oeste da Europa. Em 1918, com a partida de Almada Negreiros para Paris logo depois dos prematuros falecimentos de Santa Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso (5) , pelas ruas e vielas sombrias e deslumbrantes de Lisboa só ficam os inúmeros, eternamente desassossegados, Pessoas. O futurismo português, recém-nascido, já acabou. Mas foi logo diferente de todos os outros futurismos. Talvez porque, como ressaltou Luciana Stegagno Picchio, «in mano a Fernando Pessoa anche il Futurismo diviene un’altra cosa» (6) .

STEFANO VALENTE


(1) Editada apenas em 1982, graças ao difícil trabalho de Teresa Sobral Cunha, Jacinto do Prado Coelho e Maria Aliete Galhoz.
(2) O professor da Universidade Federal da Bahia Sandro Ornellas (Poéticas e políticas da desterritorialização: notas de pesquisa) cita «o final do famoso texto de Walter Benjamin sobre a obra de arte e sua reprodutibilidade técnica (Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, 1936), que trata do surgimento da estética da guerra com o uso da tecnologia vanguardista por parte dos regimes totalitários nos grandes desfiles, no seu traço espetacular, esportivo e guerreiro, nos quais a massa vê seu próprio rosto conjugado à apoteose “fascista da guerra”».
(3) Ou talvez a segunda, se pensamos nas sonoridades redondantes da Ode Triunfal, no n.° 1 do «Orpheu».
(4) O futurismo que é também o do Mário de Sá-Carneiro dos poemas Manucure e Apoteose, dos artistas Santa Rita Pintor e Almada Negreiros (e de todos os outros da Conferência Futurista de 4 de Abril no Teatro República de Lisboa).
(5) O suicídio de Sá-Carneiro é de dois anos antes.
(6) «Dalle avanguardie ai modernismi. I nomi e le cose in Portogallo e Brasile» – in Nel segno di Orfeo, 2004.

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